27/08/2025 às 15:00
Cento e sessenta e quatro pessoas foram resgatadas nos últimos dois anos em comunidades terapêuticas paraibanas. Elas estavam sendo mantidas nesses locais contra a vontade, em condições inadequadas e submetidas a violência.
O resgate é um dos resultados da ação do Grupo de Trabalho formado pelo Ministério Público da Paraíba, por meio da promotora de Justiça Fabiana Lobo, a Secretaria de Estado da Saúde (SES/PB), o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde da Paraíba (Cosems/PB), Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM/PB), Conselho Regional de Enfermagem da Paraíba (Coren/PB), Conselho Regional de Psicologia (CRP-13) e Conselho Regional de Farmácia (CRF-PB).
Entre os anos de 2023 e 2025, 16 instituições foram fiscalizadas, totalizando um percurso de mais de 1.500 quilômetros e muitos flagrantes de irregularidades.
O que são as CTs
Comunidades terapêuticas são entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam gratuitamente o acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas (SPA), em regime residencial transitório e de caráter voluntário.
Segundo a publicação “Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras”, do IPEA (Nota Técnica 21/17), “o modelo de cuidado proposto ancora-se em três pilares: trabalho, disciplina e espiritualidade, combinando saberes técnico-científicos (médicos, psicológicos e socioassistenciais) com práticas espirituais. Outro elemento essencial ao modelo das CTs é a convivência entre pares, isto é, a convivência entre os diversos residentes, orientada pelas rotinas e práticas terapêuticas determinadas pela instituição.”
As comunidades terapêuticas enquadram-se no conceito de ponto de atenção da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) mas não são serviços de saúde e, por isso, não podem fazer prescrições médicas, nem internações involuntárias ou compulsórias. As regras de funcionamento são determinadas pela Lei Federal nº 11.343/2006. As CTs devem oferecer projetos terapêuticos ao usuário ou dependente de drogas que visa à abstinência; a adesão e a permanência devem deve ser voluntárias e formalizadas por escrito; o ambiente deve ser residencial, propício à formação de vínculos; são necessárias avaliação médica prévia e elaboração de plano individual de atendimento e fica proibida a vedação de isolamento físico do usuário ou dependente de drogas. Pessoas com comprometimentos biológicos e psicológicos de natureza grave que mereçam atenção médico-hospitalar contínua ou de emergência não podem ser acolhidas nesses locais.
De acordo com o Conselho Federal de Medicina, para fazer internações involuntárias e compulsórias, as CTs precisam estar dotadas das mesmas condições dos estabelecimentos hospitalares, ou seja, devem dispor de plantão médico presencial durante todo o horário de funcionamento, e de equipe completa de pessoal.
Irregularidades encontradas
As inspeções identificaram irregularidades graves na gestão das unidades. Uma das mais frequentes foi a ausência do registro legal como comunidade terapêutica. Na prática, a maioria dos estabelecimentos se enquadra como equipamentos de saúde, ministrando e disponibilizando medicamentos para os internos. Também havia problemas na emissão do alvará sanitário ou outras documentações, assim como dificuldades em ter acesso ao prontuário individual dos acolhidos e do regimento interno disponível no local.
Outro ponto crítico foi o conhecimento de internações involuntárias ou compulsórias, sem respaldo legal, contrariando frontalmente as normativas nacionais que regulamentam a atuação dessas instituições. O problema foi constatado em 50% das unidades visitadas pelo grupo de trabalho.
Duas unidades tinham oito adolescentes internados, o que é proibido pela Resolução nº 249/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Também foram encontradas pessoas idosas, mulheres, pessoas com deficiência física, com transtornos psíquicos que não eram decorrentes de álcool e drogas, como uma espécie de “depósito” de vulneráveis, situação de flagrante violação dos direitos humanos.
Em mais da metade das instituições fiscalizadas havia medicamentos vencidos, fracionados sem identificação (lote e validade), e psicotrópicos sem a devida prescrição/prontuário médico. Além de receituários em branco de medicamentos controlados, assinados e carimbados por profissional médico.
A ação do grupo de trabalho também constatou a ausência de profissionais de saúde qualificados (médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros), ficando os próprios internos, em alguns estabelecimentos, responsáveis pela guarda e distribuição dos medicamentos. E casos de maus-tratos, cárcere privado, violência física, psicológica e até sexual foram documentados, nas mesmas comunidades terapêuticas que realizavam internações involuntárias e/ou compulsórias, ou seja, metade das CTs fiscalizadas aplicava essas punições.
As consequências
Quatro comunidades terapêuticas foram interditadas pela Agência de Vigilância Sanitária, em razão de funcionarem sem alvará sanitário e/ou por exercerem suas atividades irregularmente. Como desdobramento destas fiscalizações, foram instaurados inquéritos civis públicos e ajuizadas ações civis públicas, para interdição dos estabelecimentos em razão das situações insalubres e nocivas à saúde dos internos.
As 164 pessoas mantidas nas comunidades terapêuticas contra a vontade foram resgatadas. Os oito menores encontrados foram encaminhados à rede de proteção da criança e adolescente. Medicamentos vencidos e receitas médicas irregulares foram apreendidos.
Nos casos de agressão e/ou violência (física, sexual, psicológica, patrimonial), os responsáveis foram levados para serem ouvidos na central de polícia de cada município.
No âmbito criminal, a 1ª Vara Criminal de Campina Grande condenou sete pessoas de uma CT pela prática de sequestro, cárcere privado e tortura, nos anos de 2023 e 2024, contra cinco internos.
Para a promotora Fabiana Lobo, apesar de haver também um trabalho sério e dentro da lei sendo feito em alguns CTs visitados, é preciso dar continuidade às fiscalizações, que “revelaram um cenário preocupante na maioria das comunidades e centros terapêuticos inspecionados, o que pede a urgência de uma atuação contínua e rigorosa do Ministério Público e demais órgãos de fiscalização, para garantir a proteção dos direitos e a integridade física e mental das pessoas acolhidas nessas instituições”.
Fonte: Repórter PB
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