02/09/2025 às 10:09
O mercado evoluiu para a criação da modalidade S.A ‧ Foto: divulgação
Em suas observações acerca do homem em sociedade, uma das conclusões de Kant é que a pessoa não deve fazer algo que não poderá contar depois. O esconderijo é o lugar do imoral, e alguém se esconde, no mínimo, para escapar da reprovação pública. Não precisa haver uma punição formal, há uma punição interna e outra social na vergonha pelo ato. Estamos tratando da esfera pública, do convívio público, onde deve prevalecer a transparência, mas não a exibição, um exagero compensatório de carências de reconhecimento. De outro lado e inversamente, na esfera privada o segredo é o princípio maior das disputas no mercado, lugar de esconderijos para proteção do lucro.
Mesmo no setor privado, no entanto, há uma moral por zelar e é prevista a divulgação de algumas informações básicas para orientação do mercado, como os lucros auferidos ao fim do exercício fiscal pelas sociedades anônimas (S.A.). O mercado (e as leis), entretanto, tem tolerado atitudes excessivas na busca pelo lucro, uma gana maquiavélica, parodiando injustamente o famoso escritor, pois nessas ações os fins são justificados por meios inescrupulosos. E aqui os empresários não silenciam para ocultar particularidades de seus processos produtivos, e sim coisas feias que um filho(a) não contaria para sua mãe.
O mercado evoluiu para a criação da modalidade S.A. ao perceber que assim possibilitaria mais mecanismos de financiamento para as inciativas reconhecidas pelo mercado, pois além dos tradicionais empréstimos, acrescentava a compra de ações (quotas do capital) para a sociedade em geral. O capital dessas empresas teria o privilégio da responsabilidade limitada ao capital, que restringe a responsabilidade financeira de seus atos até o volume do capital investido, ou seja, litígios diversos julgados e passivos apurados só poderiam atingir, no máximo, o capital declarado da empresa. Fica aí subentendido que a responsabilização socioeconômica, diferentemente das empresas menores, não alcança o patrimônio pessoal dos dirigentes e a empresa pode sair de ações (trabalhistas, principalmente) sem responder pelo total do passivo eventualmente apurado pela justiça. É uma impunidade relativa reconhecida pela lei em nome do estímulo à expansão das empresas.
Há toda uma literatura especializada que estuda esse tipo de impunidade, que com a passar do tempo tem aumentado os valores estimados de perdas dos agentes prejudicados, confiantes investidores desavisados do jogo de cartas marcadas que são os mercados oligopolizados, onde as grandes empresas desequilibram a balança a seu favor com influência e lobbies a perder de vista. Anônimos são os milhares de perdedores ao longo da história, que tem tropeçado em crises fabricadas por gestores inescrupulosos que, se os governos não marcam em cima, aproveitam brechas das leis para atuar de forma predatória, buscando exclusivamente altos lucros no curto prazo sem sustentação real. Como não têm bases, a casa cai adiante, e eles saem, sem querer aparecer para reportagens nesse momento (antes se mostravam risonhos como comandantes de prósperos negócios) com as malas cheias de dinheiro, ou, melhor dizendo, sem malas, já que os milhares de dólares ou reais que ganharam com as fraudes não cabem em malas, apenas em contas em paraísos fiscais.
A especulação possibilitou inicialmente uma maior regularidade nos preços, na medida em que investidores compravam na safra para vender na entressafra, com a busca do ganho gerando resultado estabilizador para as economias, mas tomou rumos que predominantemente passaram a propiciar o crescimento de uma classe de investidores predatórios, que passaram a optar pelas fraudes como melhor caminho para alcançar a multiplicação do capital investido num curto espaço de tempo. Os dirigentes e os integrantes do legislativo precisam criminalizar de forma mais dura essas ações, sob pena de macular os participantes respeitosos do mercado. As decisões das grandes empresas não se restringem a um interesse apenas privado, elas afetam milhares de pessoas, tanto trabalhadores quanto pequenos investidores de suas suadas economias, portanto merecem alguma forma de regulação.
No cotidiano, os cidadãos são induzidos a discutir questões morais relevantes, que dizem respeito, entretanto, muito mais a esferas sociais, desviando a atenção das questões morais econômicas, numa dinâmica mantenedora de toda uma situação favorável ao enriquecimento por meios ilícitos de um pequeno grupo de agentes. A questão é: que padrões morais queremos para nossa sociedade e nossa economia? Tradição, família e propriedade? Só isso? Não cabe aí também modernidade e uma democratização da propriedade? E punições mais severas para crimes de gestão? Provoco porque não são objetivos excludentes. É preciso olhar para os lados para reconhecer a modernidade, os avanços tecnológicos e os as novas formas de ludibriar os incautos investidores no mercado, além de proteger milhares de funcionários que perdem o emprego no processo.
Vamos continuar deixando as crises voltarem, de tempos em tempos, sem punir responsáveis? Em 1929 as perdas eram computadas em milhões de dólares, em 2000 as cifras bateram os bilhões de dólares e em 2008 alcançou o patamar dos trilhões de dólares, e os prejudicados também cresceram. São milhares de famílias devastadas com perdas e dívidas acumuladas em razão de um padrão predatório que se instala no mundo dos negócios financeiros e conquista os incautos que querem aumentar seu pequeno montante de recursos acumulados por toda uma vida.
Os efeitos das crises mundiais forma menores no Brasil porque temos legislação mais rígida, mas o problema da impunidade é muito parecido, pois se não precisamos nos contaminar com crises do exterior se temos as próprias.
Kant entende de convívio social, mas na economia o jogo é mais pesado, e o pior é que parece que a sociedade está sendo contaminada pelo cinismo dos altos jogadores econômicos. O mercado deveria zelar por um padrão honesto de negócios, pois deixando passar os marginais de colarinho, maculam toda uma estrutura que possibilitou o aumento da produção e da produtividade ao longo da história.
A justiça deveria ser mais rigorosa e menos susceptível a montantes de capital e seus advogados de primeiro time. No Brasil, nomes como Luís Nassif, Eduardo Moreira e José Kobori perceberam o problema e passaram a criticar duramente as práticas do mercado no Brasil, e do financeiro em particular, denunciando jogatinas que resultam em prejuízos fabulosos, como o caso das americanas (que envolveu alguns dos homens mais ricos do país). O mercado que se cuide para não colar sua imagem na desses degenerados por dinheiro.
* Professor titular do departamento de economia da Universidade federal da Paraíba.
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