08/12/2025 às 13:13
Bica - João Pessoa ‧ Foto: divulgação
Pessoas passeavam tranquilamente no parque quando percebem um certo alvoroço. João Pessoa novamente centralizava a atenção nacional com o caso do rapaz que invadiu o habitáculo dos leões na Bica. Era um deficiente mental com recorrentes passagens pela polícia que infelizmente não sobreviveu às garras de uma leoa que seguiu seu instinto natural. Deixando de lado o circo de horrores ao qual muitas pessoas se entregam, seja para filmar ou para assistir depois, este é mais um capítulo da história de um dos países que mais despreza a vida no mundo.
Não se trata de especificar a violência contra mulheres, contra pobres e negros ou contra os LGBTs, ao contrário, o ponto principal é a generalização da violência contra o ser humano. Todos importam, e enquanto predominar a violência como valor maior nessa sociedade, campanhas diversas acerca das violências específicas não vão ter maiores resultados. E de novo vou bater na mesma tecla: é um problema estrutural, encrostado na população, como um câncer de difícil remoção instalado nas entranhas.
Nas periferias em geral, a violência é consequência do ancestral abandono da população pela elite, que só pensa na extração impiedosa de riquezas via trabalho máximo do contingente populacional disponível, aumentado via escravização de africanos e depois com imigração europeia e asiática. Num projeto colonial pessoas não são gente, são braços e pernas para mover a natureza, moer cana, plantar e colher café, extrair ouro, produzir mercadorias industrializadas ou atender em call centers, com retribuição insuficiente para manter uma vida minimamente digna. É curioso como num mundo globalizado e de comunicação instantânea os povos periféricos não percebam a diferença de sua condição em relação aos países centrais, mas não se trata apenas de informação, e sim de conhecimentos históricos. Se pessoas comuns são tratadas a pão, água e violência no país, o que esperar de marginalizados?
Apenados são considerados lixo pela maioria da população, mas os criminosos de colarinho branco têm tratamento diferenciado e raramente vão parar na cadeia. Quem vai para cela pode progredir e sair em pouco tempo para voltar a reincidir, já outros, muitos, são esquecidos lá dentro e cumprem bem mais que sua pena original. Distorções abundam, restando uma imagem consolidada de injustiça com regra. Os deficientes mentais, por sua vez, exigem cuidados específicos, caso a caso, e como esperar essa atenção especializada onde se mendiga por um pouco mais de recurso para saúde, educação e segurança pública? Órgãos e programas foram criados, mas não dão conta da demanda.
O invasor da jaula dos leões deveria ter tratamento especial, porém foi apenas mais um brasileiro abandonado pelas instituições competentes. Cada caso tem suas particularidades, alguns são mais ou menos complexos, vêm acompanhados de uma família mais ou menos dedicada, com mais ou menos posses, etc. Desconheço a gravidade da deficiência, mas sem dúvida foi um caso de abandono, familiar e social, com consequências extremas. É mais um caso que mostra como a vida é barata em nosso país. Outra vez o filme ruim da nossa realidade se passa na frente de nossos olhos e vai se repetir enquanto não mudarmos significativamente como um todo.
Enquanto não entendermos que não é normal termos estatísticas de mortes por homicídios iguais ou maiores que os países em guerra, nem inocentes sendo mortos em série, que devemos levar os suspeitos a julgamento antes de atirar neles pelas costas, que não devemos deixar mofando na cela alguém que já cumpriu sua pena, que portadores de deficiência devem ser corretamente assistidos pelo Estado, estaremos abandonando aos leões pessoas como se fossem presas para um próximo ataque, como fazemos todos dias. Estaremos tratando pessoas como animais mais frágeis numa selva ou como uma peça que deve ser usada à exaustão e substituída quando esgotada.
Pessoas merecem respeito que frequentemente falta em nosso convívio, e quando não se tem respeito, também se é pouco, uma coisificação qualquer. Viramos mecanismos congelados, braços mecânicos jogando pedra em qualquer um sem um mínimo exercício de compreensão da condição do outro e do todo em que está imerso. Enquanto tivermos entendimento curto e raso das coisas, teremos uma realidade rasteira, que passa rasteira numa maioria da população, que também apoia atrocidades da polícia. Os abandonados se abandonam e assinam em baixo o modelo.
É preciso levantar a cabeça, abrir os olhos e fazer a mente funcionar para começar a enxergar tudo ao seu redor com uma visão mais profunda e, acima de tudo, crítica. É preciso estudar, a sociedade não é simples como parece. Porque o rapaz foi parar na jaula dos leões? Porque o rapaz foi preso e solto mais de dez vezes antes disso? Como se deixa vagando pelas ruas alguém com o intelecto comprometido como ele? Erros em série, omissões, equívocos e outros parangolés nos caracterizam, precisamos deixar de vestir essa roupa, barata, e valorizar a vida por seu devido e elevado preço.
* Professor titular do departamento de economia da Universidade federal da Paraíba.

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